sexta-feira, 27 de novembro de 2009

150 quilos e um câncer

Acordei a primeira vez as 8h30 de um sono profundo. A Marina, sempre me acorda com o som das portas do guarda-roupa. Mas eu gosto. Finjo que ainda estou dormindo para observa-la se trocando. Fico ali admirando seu corpo e agradecendo pela sorte que o magnífico destino colocou em mim. “Luiz, you are the dude”, disse o destino certa vez em inglês num sonho legendado com letras amarelas. Odeio legendas em branco, dificultam a leitura e me lembram que preciso melhorar meu inglês. A Marina segue o mesmo ritual todas as vezes que durmo no seu apartamento, depois de se trocar ela se joga em cima de mim para dar beijinhos de bom-dia e dizer o quanto eu fico lindo dormindo. “Parece um bebezinho”, ela diz.

Estava quente, úmido e abafado quando escutei as primeiras marteladas, que foram aumentando a intensidade conforme meu cérebro assimilava. Ela já tinha saído e eu tentei cochilar mais um pouco. As pancadas que vinham do apartamento ao lado eram a perfeita nona sinfonia da construção civil. Distingui dois martelos leves e um pesado. Os leves batiam em algo metálico e o pesado quebrava paredes, produzindo um som tipo pim-pim-pow, que às vezes mudava para pim-pow-pim dependendo do ritmo da mão do pedreiro.

Não teve jeito, levantei e fui dar aquela mijada matinal, parecendo ter sido acometido por uma labirintite. Apertei o botão da descarga e quando o soltei ele voou no meu peito. O dia estava ótimo. O pino travou e a água não parava de fluir. Bateu o desespero do tipo “agora fodeu tudo e vou passar o dia olhando a água escorrer para dentro da privada”. A labirintite parou. Fechei o registro, mas ele não funcionava apenas para um encanamento. Qual? O da descarga, lógico. Enquanto pensava numa solução ouvia o som do desperdício e a voz do ecologista “pense num futuro sem água, você está contribuindo para nossa desgraça”.

Lembrei dos martelos, dos pedreiros e pensei “ferramentas”. Coloquei a calça, uma camisa sem abotoar e fui ao apartamento ao lado pedir um grifo. Abri a porta e o cara que me atendeu já imaginava. “Escutamos o barulho”, disse o pedreiro n° 1. “Preciso de um grifo”, eu disse. O n°2 pegou a ferramenta e emprestou facilmente vendo minha cara de desespero. Solucionei o problema, devolvi o grifo e voltei para tomar um banho relaxador. Já tinha passado alguns minutos e chegaria tarde no escritório. Me arrumei as pressas e coloquei meus óculos escuros recém adquiridos numa feira em Limeira. É uma imitação do Ray-ban aviador, com lentes esverdeadas e proteção de 300 UVs. Mas não arrisco olhar diretamente para o sol, nem em caso de eclipse total. Coloquei os óculos, olhei no espelho e falei “hoje você tá pronto para desfilar em Milão”. Mas dependendo da roupa e da auto-estima esse pensamento pode mudar para “Porra, man, você podia ter um Santana branco com placa vermelha, um massageador de bolinhas no banco e a estátua da Virgem Maria pendurada no retrovisor”.

Narrei todo o caso para a Marina via celular e fui trabalhar. Ônibus até a Avenida Paulista, Metrô, baldeação na estação Ana Rosa, desço na estação São Judas e caminho. Gosto de caminhar. Observo pessoas, situações, dou risada dos meus próprios pensamentos e todos que me olham acham que sou louco. Observei, a uns 40 metros a minha frente, uma mulher vestida toda de azul claro, calça de academia, dessas que modelam o corpo, regata e boné. Ela caminhava na mesma direção que eu. Passou um motoboy e buzinou, fez um sinal, falou alguma coisa do tipo “ô lá em casa” e foi embora. A mulher irradiava a alegria que só os que ganham na loteria sabem o significado.

Fui chegando mais perto da mulher, e no viaduto que passa por cima da Avenida dos Bandeirantes eu estava a uns 20 metros da smurfete feliz. Dessa distância já dava para ver que ela não era jovem, apesar da cintura fina e das ancas largas, traços brasileiros muito valorizados nos melhores puteiros europeus, percebi que seu corpo já demonstrava sinais de idade avançada. E realmente era uma idosa bem cuidada e que chamava atenção. Um senhor que passava pelo viaduto em sentido contrário ao nosso olhou para ela e disse o quanto ela estava bem. Ela parou, sorriu e disse “E não era para estar? Para quem já teve 150 quilos e enfrentou um câncer?”. Que se foda um problema na descarga da privada! Meu dia está ótimo.